quinta-feira, 18 de novembro de 2010

shhhh!

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Antes de sair, voltou-se para Antonieta:
— Ia lhe dizer agora uma coisa muito importante. Mas é tão
importante que prefiro não dizer. Só é sincero aquilo que não se diz.
Boa noite.
— Então isso também não é sincero — sorriu ela.
— Também não. Só o silêncio é sincero. O silêncio de uma pessoa
dormindo, por exemplo. Como é sincero alguém dormindo! Sincero
como uma flor. Imagine se uma flor falasse, que ridículo não seria. Por
isso é que eu não gosto de desenho animado. Dormindo é que cada um
se revela, por causa do silêncio, ou seja: feito à imagem e semelhança
de Deus.
— E os que roncam? — gracejou Eduardo.
O velho fulminou-o com o olhar:
— Quem ronca no homem é o demônio. A luta se trava até dentro
do sono, só cessa com a morte. Os mortos não roncam, seu doutor,
porque Deus vence sempre. O silêncio é a linguagem de Deus. No
princípio era o Verbo, vocês sabem o que é isso? O silêncio, o espantoso
silêncio do princípio. Ah! o verbo e o silêncio são a mesma coisa. Que
coisa bonita que eu falei, minha Nossa Senhora. É preciso escutar o
silêncio, não como um surdo, mas como um cego! O silêncio das coisas
tem um sentido. Quem não entende isso não entende nada.
Eduardo se viu de súbito transportado a uma noite já longínqua,
no Parque, diante da estátua de Anita Garibaldi. O demônio mudo.
— E a música? — desafiou.
— A música — o velho traçou com o dedo uma pausa no ar — é a
expressão mais completa do que estou dizendo. Ou do que não estou
dizendo, pois é preciso ouvir apenas o que não se diz. Quem tiver
ouvidos para ouvir, ouça. Eu ia chegar nela. A música também é
silêncio. Bach sabia disso, Mozart também. Beethoven só soube quando
ficou surdo. O ar não é silencioso? O vento não faz barulho? E que é o
vento senão ar? A música é o silêncio em movimento.
— O mesmo com as palavras.
— Não senhor: as palavras estão em quem fala e em quem escuta.
O silêncio fica entre os dois, intocado, um silêncio enorme,
intransponível. Ao passo que a música está nela mesma, isto é, no que
resta além de nós. E o resto é silêncio. Adeus.
Já à porta:
— Reparem como o meu silêncio é mais sugestivo do que
qualquer palavra.
Olhou fixamente o casal durante algum tempo e voltou-se, solene,
cruzou lento a rua, a garrafa de uísque na mão.
— Que homem extraordinário — disse Antonieta, deslumbrada.



Autor: Fernando Sabino
Livro: Encontro Marcado
(no fim do primeiro pedaço da parte II)


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